A NORMA DE COMBATE AO GENOCÍDIO NA PRÁTICA INTERNACIONAL: O CASO RUANDÊS


Paula Drumond Rangel Campos1



Resumo

O artigo analisa a efetividade da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime Internacional de Genocídio na prática internacional, tendo como foco o genocídio de Ruanda. Considerando como efetividade ou eficácia social de uma norma a realização na sociedade de seus efeitos plenos, tal como fora idealizada, o presente trabalho busca responder às seguintes questões: Houve efetividade da norma de combate ao genocídio na prática internacional? Por quê? A hipótese cuja correção se pretende verificar é a de que embora tenha sido um instrumento útil na punição e na investigação desse genocídio a posteriori, a Convenção foi ineficaz com relação à prevenção e interrupção do genocídio em andamento, mostrando-se, portanto, incapaz de promover e de garantir a paz, conforme previsto pelo marco teórico de J. Mearsheimer em seu artigo "The False Promise of International Institutions" (1998).

Palavras-chave

Direito Internacional; Genocídio; Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime Internacional de Genocídio; Ruanda.


Abstract

The purpose of this study is to analyse the effectiveness of the Convention on the Prevention and Punishment of the International Crime of Genocide in international politics emphasizing the Rwandan Genocide. Giving that effectiveness is the production of the full effects of a norm as primarily idealized,the article intends to answer the following questions: Was the 1948 Convention effective in the Rwandan genocide? Why? The hypothesis to be verified considers that, although the convention was an effective instrument to punish and investigate the Rwandan genocide a posteriori, it was uneffective to prevent and to interrupt it during the Rwandan conflict. Therefore, the document was incapable of promoting peace, as outlined by the theoretical framework provided by John Mearsheimer's "The False Promise of International Institutions" (1998).

Keywords

International Law; Genocide; Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide; Rwanda.



1Paula Drumond Rangel Campos é bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e tornou-se bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em dezembro de 2007. Atualmente é mestranda em Relações Internacionais na instituição.




Introdução

O presente trabalho visa analisar o papel desempenhado pela norma de combate ao genocídio na prática internacional, por meio do estudo de caso do genocídio de Ruanda, tendo como base o comportamento da sociedade internacional frente às atrocidades cometidas pelo governo hutu na década de 90. A reflexão acerca da efetividade dessa norma se apoiará no seu principal instrumento tipificador: a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 19481.

O marco teórico utilizado nessa análise será o fornecido por John Mearsheimer no seu texto "The False Promise of International Institutions" (Mearsheimer, 1998, p. 329-383), com vistas a demonstrar que a Convenção não realizou seus efeitos pretendidos, tendo sido esta incapaz de prevenir e reprimir o genocídio ruandês durante a sua ocorrência e, conseqüentemente, de contribuir para a preservação da paz2 no sistema internacional. Tal incapacidade é atribuída ao fato de as instituições3 serem moldadas para não comprometerem os interesses de segurança das grandes potências, uma vez que, em um sistema anárquico, os Estados são compelidos a perseguirem primeiramente objetivos relativos à sua sobrevivência e à busca de poder relativo para garanti-la. Desse modo, os objetivos não relativos à sua segurança, como questões de cooperação e de direitos humanos, por exemplo, são considerados apenas quando estiverem de acordo com a sua lógica de equilíbrio de poder e de busca por poder relativo (Mearsheimer, 2001, p.46).

A idéia supramencionada defendida pelo autor pode ser comprovada na prática, por meio da análise do genocídio de Ruanda, uma vez que:


O genocídio ruandês explica os principais constrangimentos estruturais - políticos, econômicos e psicológicos - que efetivamente bloqueiam a criação de um regime antigenocídio. Esses constrangimentos permanecem como grandes obstáculos à reforma ao comprometerem a identificação de que impedimentos devem ser superados para que os povos expostos ao genocídio possam confiar em um regime internacional que garanta a sua segurança ao invés de os esforços de auto-ajuda oriundos dos atores estatais (Kolodziej, 2000, p.12).


Nesse sentido, será possível perceber que a Convenção só adquire algum tipo de eficácia quando serve aos propósitos de contribuir para a segurança e a prosperidade dos Estados mais poderosos, tendo em vista que em um ambiente onde predomina a competição, os atores estatais, sendo racionais, só colaboram na medida do seu auto-interesse, pois temem arriscar sua posição em uma arena caracterizada por incertezas e possibilidades de trapaça. Por fim, a análise que se seguirá identificará que, apesar das incapacidades, a Convenção não é uma letra morta em sua totalidade. Ela produziu uma eficácia a posteriori, quando foi instaurado o Tribunal Penal Internacional para julgar os crimes cometidos em Ruanda em 1994. Acredita-se, aqui, que a produção desses efeitos teve como fator determinante o interesse dos Estados que formularam esse documento. Tais Estados tiveram como objetivo dar à convenção algum tipo de eficácia, não apenas para se resguardarem de futuros genocídios, mas também para manter vivo o ambiente ideológico humanista que eles lutaram para desenhar no pós-Segunda Guerra. Segundo a leitura realista, o discurso de preservação de direitos humanos que emerge com a instituição do Tribunal de Nuremberg revela não a existência de valores comuns, mas sim de interesses específicos dos atores mais poderosos, que conseguiriam, dessa forma, impor a sua voz no sistema internacional.

Nesse sentido, essa consciência dita "universal" seria proveniente não de uma unidade ou da existência de um bem comum inerente a todos os seres humanos, mas sim da sobreposição de um discurso maximizador de poder, que consegue se impor no sistema internacional anárquico justamente porque provém das vozes mais poderosas, que, por sua vez, utilizam-no para a manutenção de seu status quo. A manutenção desse discurso passa a servir ao objetivo desses atores porque impõe códigos de conduta traçados de acordo com seus interesses específicos, os quais, ao se consolidarem, reduzem não somente os custos de barganha em sua relação com os demais atores, mas também facilitam a racionalização da dominância do mais forte.

Com o objetivo de comprovar que a Convenção de 1948 foi incapaz de promover os objetivos aos quais se propõe, o presente trabalho traçará primeiramente um breve panorama do conflito ruandês, buscando familiarizar o leitor com suas origens, e analisará o comportamento internacional ao longo de sua intensificação, de modo a demonstrar como as prescrições deste documento possuíram um impacto irrisório na conduta desses atores durante o genocídio. Em seguida serão apontados seus efeitos após o genocídio, por meio da instituição do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, comprovando, assim, que há algum tipo de eficácia advinda da Convenção, ainda que esta continue conectada aos arbítrios das grandes potências.



        O conflito

Ruanda é uma das menores e mais pobres nações do continente africano (Magnarella, 2005, p.802). O país possui uma densa população, cuja maioria se concentra no trabalho rural, dominado por fazendeiros de subsistência, que dependem dos escassos recursos naturais provenientes de seu território montanhoso (Magnarella, 2005, p.818). Tendo em vista a escassez de recursos que pudessem interessar a outros países e a sua posição pouco estratégica - bem no meio do continente africano, entre Uganda, Tanzânia, Burundi e Congo -, pode-se afirmar que Ruanda tem importância ínfima no equilíbrio de poder do sistema e, conseqüentemente, dispõe de pouca visibilidade internacional.

Em Ruanda constata-se a presença dominante de três etnias: os hutus, que representam a maioria da população ruandesa; os tutsis, que representavam por volta de 15% da população à época do genocídio e, por fim, os twas, que constituíam apenas 1% da população ruandesa. Os primeiros praticavam predominantemente atividades agrícolas, enquanto os segundos se concentravam na pecuária.

Tutsis e hutus conviviam dentro do mesmo território, diferenciando-se mais pelas atividades econômicas que praticavam, uma vez que falavam a mesma língua, possuíam a mesma religião e eram praticamente indistinguíveis fisicamente.

Percebe-se, contudo, que após a dominação colonial da Alemanha e, mais tarde, da Bélgica, passou a ser aprofundada pela metrópole uma política de diferenciação entre os dois grupos. Segundo Barnett e Finnemore (2004):


Motivados por uma ideologia "científica" que determinava que os tutsis, que eram oriundos da região norte e eram vistos como possuidores de características caucasianas, eram racialmente superiores do que os hutus, os belgas introduziram reformas políticas, carteiras de identidade e favoritismos administrativos e econômicos que institucionalizavam uma clivagem étnica e a supremacia tutsi (Barnett, 2004, p.136).

Os belgas, portanto, concederam à minoria tutsi um status de elite, calcado em critérios físicos como, por exemplo, o tamanho do crânio e o formato do nariz, mantendo a população segregada. A ênfase na superioridade dos tutsis era um processo simultâneo à marginalização da maioria hutu. Por meio dessa política, a metrópole mantinha a população ruandesa dividida, impedindo, dessa forma, que esses grupos se vissem como uma unidade capaz de se unir para questionar o poder central, ameaçando, assim, sua posição no sistema internacional.

Com o fim da colonização belga e a independência do país em 1962, os hutus conseguiram tomar o poder e passaram a governar o país e a tratar com hostilidade a minoria tutsi, perpetuando a divisão étnica e o passado de subordinação de uma etnia em detrimento da outra. A dominação hutu durou praticamente três décadas e levou grande parte da população tutsi a se refugiar em Estados vizinhos4, já que estes eram alvos de ataques da maioria rival5 . Com a chegada dessa massa de refugiados a partir da década de 60, o governo de Uganda - destino freqüente de tutsis - passou a financiar e a treinar milícias desses refugiados contra o governo ruandês. A partir de então, foi estabelecida uma espécie de "guerra civil constante" entre o governo ruandês, apoiado por França e Bélgica, e os refugiados tutsis, apoiados por Uganda (Kolodziej, 2000, p.14).

Nesse contexto de discriminação histórica, em 1990, uma milícia armada formada por tutsis exilados - a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) - invadiu Ruanda com vistas a depor o governo hutu, assim como a conseguir o repatriamento dos refugiados tutsis. Tal campanha acabou por iniciar uma guerra civil, cujo cessar-fogo só foi estabelecido três anos depois, por meio dos chamados Acordos de Arusha. Esses acordos instituíram um governo compartilhado entre as duas etnias e a supervisão inicial do cessar-fogo pelas forças de paz da ONU.

Os extremistas hutus, todavia, temendo perder seus privilégios políticos e retornar ao passado de submissão e repressão, estavam dispostos a sabotar o acordo em questão para garantir a sua permanência no poder.

Foi nesse contexto que o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu a United Nations Assistance Mission for Rwanda (UNAMIR), a missão da ONU responsável por monitorar a paz instituída pelos Acordos de Arusha; garantir a segurança, a desmilitarização e a integração da FPR às forças armadas; e estabelecer uma zona desmilitarizada na capital, Kigali.

A UNAMIR foi autorizada por meio da Resolução 872, e previa o envio de um contingente de 2.548 soldados6, sendo a maioria deles nacionais da Bélgica. Seu mandato, vale dizer, visava tão somente à implementação dos objetivos supramencionados, previstos em Arusha. A força só poderia ser usada para a autodefesa do contingente.

Destaca-se que, desde essa época, a inteligência americana já tinha previsões acerca da possibilidade da escalada do conflito étnico em Ruanda, a despeito dos acordos de paz. Nada foi feito, contudo, para evitá-lo. Samantha Power (2004) atribui essa inércia a uma confiança extrema da diplomacia americana no cumprimento dos acordos de paz (Power, 2004, p.396-397). Tal confiança demasiada, explicitada por Power, pode ser melhor explicada pela visão de Mearsheimer (1998) acerca do desinteresse e do descompromisso das grandes potências com causas que não sirvam ao seu propósito maior de garantia da sobrevivência por meio do ganho de poder relativo. Nesse sentido, a confiança no cumprimento de um acordo tão fraco era, na verdade, o desinteresse de um comprometimento maior com uma região e com uma causa que não dizia respeito às questões de segurança dessas grandes potências. Nesse sentido, afirma Mearsheimer (1998):


...Os Estados raramente querem despender recursos humanos e materiais para a proteção de populações estrangeiras[...]apesar das alegações de que a política externa americana é carregada de moralismo, o caso da Somália é o único nos últimos cem anos em que soldados norte-americanos foram mortos em uma missão humanitária. E, nesse caso, a perda de meros dezoito soldados[...]em outubro de 1993 traumatizou de tal forma os políticos americanos que eles imediatamente retiraram suas tropas da Somália e se recusaram a intervir em Ruanda[...]. Neste genocídio, a intervenção seria relativamente fácil e sem efeitos significantes para os EUA na balança de poder. Mesmo assim, nada foi feito (Mearsheimer, 1998, p.47).

Assim, é possível perceber o fraco comprometimento das grandes potências com instituições que não sirvam aos seus objetivos de segurança e, portanto, de maximização de poder. A falta de interesse estratégico em uma região que não era capaz de contribuir significativamente para alterar a dinâmica do equilíbrio de poder demonstra, nesse sentido, a dificuldade de cooperação e, conseqüentemente, a "falsidade" das promessas dessas instituições de promover a paz e a estabilidade, principalmente em questões não relacionadas diretamente com o interesse racional estatal de auto-preservação na lógica sistêmica de competição e falta de confiança, na qual esses atores estão inseridos.

Em 6 de abril de 1994, a derrubada do jato que transportava o presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana - que governava o país desde o golpe de 1973 - e do Burundi, Cyprien Nytaryamira7, intensifica a crise ruandesa, não somente em relação aos massacres dos tutsis pelos hutus, retomados logo no dia seguinte, mas também em relação às instituições do país. A primeira-ministra, para quem o poder passaria após o atentado, foi perseguida e morta por sua posição moderada (Power, 2004, p.381) e, em função disso, Ruanda passou a ser governada por um grupo hutu do alto comando militar, responsável pela confecção do plano de execução dos tutsis.

A partir de então, iniciou-se o massacre sistemático de tutsis e hutus moderados por hutus radicais, incentivados a atacar os seus inimigos que, teoricamente, teriam a intenção de destruí-los (Fernandes, 2006, p.97). Os ataques aos tutsis obviamente acarretavam retaliações contra os hutus que, por sua vez, "confirmavam" a intenção dos tutsis de massacrá-los, gerando uma espécie de profecia auto-realizável.

A partir de então, listas passaram a ser divulgadas via rádio, com nomes de tutsis e hutus moderados que deveriam ser encontrados e mortos, sem que houvesse qualquer tentativa da sociedade internacional de interromper esse tipo de comunicação. Aproximadamente 8.000 pessoas eram mortas por dia em uma mobilização que envolvia a população como um todo (Power, 2004, p.569)

Em relação à Convenção, é possível perceber que a situação ruandesa se enquadrava no tipo previsto pelo art. II, uma vez que consistiam em atos previstos, no mínimo, nas alíneas "a" ("matar membros do grupo"), "b" ("causar lesão grave à integridade de física ou mental de membros do grupo") e "c" ("submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial"), todos planejados e cometidos pelos hutus com a intenção de destruir o grupo tutsi.

Mesmo assim, a sociedade internacional e suas instituições responsáveis pela promoção da paz permaneciam inertes diante da deterioração da segurança de Ruanda, uma vez que a situação do país não interferia em questões relacionadas ao auto-interesse das grandes potências. Ou seja, por não ser um país cuja estabilidade afetasse o equilíbrio de poder do sistema internacional e, conseqüentemente, o status quo dos Estados mais poderosos, as instituições presentes no sistema, construídas em cima do ideal de manutenção da estabilidade, não eram capazes de atuar de maneira independente a favor de um Estado insignificante ao equilíbrio de poder. O comportamento da sociedade internacional e de suas instituições demonstra, portanto, a dificuldade de se atingir a cooperação internacional em uma questão que não afete a segurança das grandes potências. Isso não significa dizer que não possa haver essa colaboração, mas que ela é difícil de ser alcançada, caso não envolva diretamente o interesse de maximização de poder desses atores. Nas palavras de Mearsheimer (2001):


O realismo ofensivo certamente reconhece que as grandes potências podem perseguir esses objetivos que não são relativos à segurança, todavia possui pouco a dizer sobre eles, exceto em um ponto importante: os Estados podem perseguir esses objetivos desde que seu comportamento não entre em conflito com a lógica da balança de poder[...] (Mearsheimer, 2001, p.46)

Ainda no que concerne à aplicabilidade da Convenção ao caso ruandês, é interessante destacar que o grau de planejamento envolvido no genocídio ruandês é significante e comprova o elemento intencional de destruição do grupo tutsi, requisito previsto pelo caput do art. II, corroborando assim a possibilidade de enquadramento no caso como genocídio. As milícias hutus haviam sido treinadas com esse objetivo de perseguição e destruição e recebiam apoio do governo nacional e do exército, assim como de alguns países, como a França8, por exemplo, apesar das claras violações aos direitos humanos impetradas pelo governo ruandês. Tal situação demonstra o descomprometimento com acordos internacionais, dentre eles a Convenção de 1948 e os regimes de direitos humanos, quando a questão em jogo é o ganho de poder relativo.

Vale destacar que a matança envolvia pessoas muito próximas entre si, como parentes e vizinhos. Até mesmo religiosos participavam do extermínio organizado9. Os massacres eram realizados em mutirão, com armas como machetes, que requerem muita proximidade entre a vítima e o genocida. Esses atos tinham hora para começar e acabar, ou seja: havia uma rotina envolvida no genocídio. A campanha de matança era difundida pela rádio local, a Radio-Télévision Libre des Milles Collines (RTLM), por meio da qual se divulgavam os nomes das vítimas a serem mortas a cada dia.

Tais situações são perfeitamente indicadas e puníveis de acordo com o art. III da Convenção, que prevê a punição não somente da perpetração dos atos, mas também da associação de pessoas para cometer o crime, tal como se dava nesses mutirões organizados. Destaca-se ainda a existência da incitação pública e direta para cometer tais crimes, o que era feito tanto por esses mutirões em si, que incentivavam abertamente a perseguição de tutsis por meio, por exemplo, de músicas e gritos de guerra que os identificam como "baratas" a serem eliminadas; como também pelos meios de comunicação de Ruanda, dentre os quais se destacam a RTLM, que emitia diariamente discursos que incentivavam os massacres, além de nome e endereço daqueles que deveriam ser perseguidos10.

A inércia das Nações Unidas diante da escalada de violência que vitimava aproximadamente 333 civis por hora (Gourevitch, 2006, p.130) costuma ser atribuída à emergência de uma nova mentalidade da instituição, oriunda do fracasso da organização na Somália11.A partir desse episódio, a ONU passou a limitar os casos de atuação de forças da organização, com vistas a tentar resgatar sua credibilidade. Tal situação demonstra o comprometimento, em função de pretensões meramente políticas, da efetividade do preâmbulo e do art. I da Convenção que reconhece o genocídio como crime contra o direito internacional e contra o qual as partes prometem se engajar12. Nesse sentido, a preservação da organização passou a se tornar um fim em si mesmo, e não um meio para alcançar os objetivos estabelecidos na sua Carta ou nas convenções realizadas em seu âmbito, tal como é o caso da Convenção de 1948.

Ademais, essa constatação é capaz de comprovar a incapacidade das instituições em atuarem para alcançar a paz, uma vez que estas são construídas como instrumentos de poder manobráveis por Estados que forjam princípios para tornar mais brando e legítimo o exercício do seu poder frente aos demais.

Em suma, os Estados que constroem as instituições têm como foco o ganho relativo de poder para a manutenção de seu status quo. Logo, tais instituições só funcionam enquanto maximizadoras de poder dentro dessa lógica. Por esse motivo, os dispositivos da Convenção de 1948 foram construídos para terem a sua efetividade dependente da discricionariedade de cada Estado, o que pode ser auferido pela leitura do art. V do documento, que trata da questão da repressão do genocídio apenas delegando às partes a tarefa de assegurar internamente a aplicação dos dispositivos da Convenção e estabelecer as sanções penais que serão aplicadas aos responsáveis pelo crime13.

No caso de Ruanda, é possível perceber, portanto, como as grandes potências desviaram os fins escritos na Convenção de 1948 a favor de fins não escritos nesse instrumento: a maximização de poder relativo de seus arquitetos. Ao insistirem na manutenção de uma força para monitorar um cessar-fogo que já havia entrado em colapso com o início dos massacres de civis e que, por isso, era incapaz de lidar com a deterioração da segurança de Ruanda, torna-se claro que não interessava aos Estados em questão despender seus recursos com propósitos não relacionados a sua perseguição por poder relativo.

Além do caráter sistêmico da conduta de preservar a sobrevivência em um ambiente anárquico através da busca pela hegemonia, o presente trabalho defende ainda a influência de variáveis domésticas dessas grandes potências no seu comportamento externo em relação a Ruanda. Destarte, ainda que essas variáveis extrapolem o marco realista aqui utilizado, elas serão consideradas neste trabalho, pois acreditamos que apesar de o realismo ofensivo de Mearsheimer ser o mais adequado para explicar as questões aqui analisadas, nem esta nem nenhuma outra teoria é completa o suficiente para esgotar as complexidades da realidade deste conflito.

Os britânicos, portanto, agiam condicionados também por sua agenda internacional euro-atlântica, calcada em uma relação especial com os EUA, que, à época, estava dominado por um congresso contrário às políticas de intervenção da ONU, em função do fracasso supramencionado ocorrido na Somália (Melvern & Williams, 2004, p. 3, 9). Por isso, apoiar uma ação mais sólida em Ruanda poderia enfraquecer os laços com os americanos, custo com o qual o Reino Unido não estava disposto a arcar. Ademais, deve ser destacado ainda o envolvimento dos britânicos na Bósnia, o que fazia com que o país quisesse se manter afastado de outras questões que pudessem trazer ainda mais custos políticos.

Por fim, a política externa do Reino Unido estava mais focada nos assuntos da Comunidade das Nações (Commonwealth) e da África anglófona, o que tornava Ruanda uma questão de interesse apenas indireto, em função do seu possível impacto nas relações franco-inglesas. François Mitterrand, presidente francês à época, alegava a existência de uma conspiração anglo-saxônica para aumentar a influência inglesa no continente africano, tendo em vista o financiamento da FPR por Uganda, antigo protetorado britânico. Nesse sentido, o escasso esforço britânico na questão ruandesa deve-se ao esforço pela não deterioração de suas relações com os franceses (Melvern & Williams, 2004, p.9), que apoiavam o governo ruandês como instrumento de sua política externa.

Os americanos, conforme dito anteriormente, estavam dominados por um congresso anti-ONU, impregnado das lembranças do fracasso na Somália, o que gerou um clima contrário ao engajamento do país em ações humanitárias que não servissem ao seu interesse nacional. O dispêndio de recursos com tais propósitos poderia comprometer a posição hegemônica do país, o que seria incompatível com seu propósito de maximização de poder e hegemonia para a preservação de sua segurança em um sistema de auto-ajuda.

Nesse contexto foi aprovada a Presidential Decision Directive 25 (PDD-25), em maio de 1994, que continha critérios bastante estreitos para permitir a aprovação de missões da ONU, impedindo assim o comprometimento dos recursos do país em questões não condizentes com o seu auto-interesse e cujo envolvimento poderia minar a sua posição privilegiada no sistema. De acordo com Mearsheimer (2001), "somente um Estados que realize um julgamento enganado perde a oportunidade de se tornar o hegemon do sistema por pensar que já possui poder suficiente para garantir a sua sobrevivência" (Mearsheimer, 2001, p.35). Assim, segundo os critérios da PDD-25, os EUA argumentavam que não cabia a ampliação da ação da ONU em Ruanda (Melvern & Williams, 2004, p.7).

Tendo em vista os fatores supramencionados, o governo norte-americano decidiu negligenciar a escalada do conflito em Ruanda simplesmente porque admitir a necessidade de agir em um país pouco atrativo traria enormes custos a Washington, não apenas pelo dispêndio de recursos econômicos, mas também pelo custo político que um outro fracasso traria interna e externamente, uma vez que isso poderia minar a legitimidade e o poder do país no cenário internacional. Nesse sentido, o Estado americano preferia envolver seus recursos disponíveis em questões estratégicas condizentes com a maximização de poder relativo, capaz de consolidar a sua hegemonia. Destarte, como a questão de Ruanda não afetava o cálculo racional de equilíbrio de poder norte-americano, Washington preferiu permanecer inerte.

O governo francês, por sua vez, adotava uma linha de política externa que tinha como objetivo a manutenção de boas relações com os países francófonos, com vistas a aumentar a sua influência na África e a fortalecer os exércitos desses países após a descolonização, para que eles funcionassem como braços do exército francês fora do país (McNulty, 2000, p.109). Por meio dessa política, a França visava a fortalecer a sua posição no sistema internacional a partir da expansão de sua influência nos países com os quais possuía afinidade lingüística.

Nesse contexto, o interesse nacional francês permitiu que o país se tornasse um dos maiores aliados de Habyarimana e continuasse apoiando o governo hutu após a sua morte. Além disso, o governo francês era o maior fornecedor de armas a Ruanda, promovendo a sua militarização, assim como o treinamento do exército ruandês, principalmente a partir da invasão de Ruanda pela FPR, em 1990. A partir deste momento passa a haver no país a presença militar direta de tropas francesas a favor de Habyarimana (McNulty, 2000, p.109-110). Estima-se que a França tenha fornecido às milícias aproximadamente seis milhões de dólares em armas entre 1992 e 1994 (McNulty, 2000, p.113). O envio se prolongou mesmo após o início do genocídio e a despeito das evidências de violações aos direitos humanos levadas a cabo pelo governo ruandês. Nem mesmo o embargo de armas, imposto em maio pela Resolução 918 do Conselho de Segurança, foi suficiente para conter o governo francês (McNulty, 2000, p.116-7). Como conseqüência da atuação francesa, destaca Mcnulty (2000): "A militarização externa de Ruanda foi um fator-chave [...] para a intransigência dos governantes daquele Estado [...]. A manutenção do apoio francês[...] convenceu os extremistas que tal apoio continuaria a ser garantido no futuro" (McNulty, 2000, p.121).

Portanto, as posturas e os cálculos anteriormente citados das grandes potências deixam evidentes que esses países buscam a sua maximização de poder e, para tal, realizam cálculos de custo-benefício antes de se envolverem em questões que causem um dispêndio excessivo de recursos que possam ameaçar a sua posição no sistema internacional. Isso porque os Estados "estão preocupados primordialmente com a distribuição de capacidades materiais" (Mearsheimer, 2001, p.36) e, em função disso, limitam sua atuação a questões que tragam vantagens estratégicas ou que não acarretem custos excessivos, o que pode enfraquecer a economia e minar o seu poder (Mearsheimer, 2001, p.37). Assim,


Estados operando em um sistema de auto-ajuda agem prioritariamente de acordo com os seus próprios interesses e não o subordinam aos interesses de outros Estados ou aos interesses de uma suposta comunidade internacional. A razão para isso é simples: vale a pena ser egoísta em um mundo de auto-ajuda (Mearsheimer, 2001, p.33).

Por isso, os Estados podem até formar alianças ou criar instituições, mas, de acordo com Mearsheimer (1998), elas funcionam apenas como "casamentos de conveniência" a serviço dos interesses egoísticos e da maximização de poder desses Estados (Mearsheimer, 2001, p.33). Tal situação explica a incapacidade dessas instituições de promoverem a paz ou de estarem a serviço de princípios acima dos interesses de segurança das grandes potências. A Convenção de 1948 é emblemática para ilustrar essa questão.

Apesar de ter sido realizada com o propósito declarado de prevenir e combater o genocídio, sua existência não conseguiu compelir os Estados signatários a agirem de maneira adequada para colocar em prática seus dispositivos. Pelo contrário, a existência da Convenção foi ignorada justamente para que não houvesse o reconhecimento de um genocídio em andamento, evitando assim alguma postura mais ativa por parte dos Estados. Como os seus dispositivos foram arquitetados para dependerem totalmente da postura individual dos atores estatais para adquirirem algum tipo de efeito na prática, a existência do documento per se não incitava qualquer tipo de atuação ou responsabilidade direta dos seus ratificantes pelo que estava ocorrendo em Ruanda. Em suma, é possível perceber como a Convenção de 1948 não conseguiu cumprir seu propósito de prevenir e punir o genocídio em andamento porque ela, assim como as demais instituições, foi desenhada para produzir efeito somente quando servisse ao cálculo racional de ganho de poder relativo dos atores envolvidos, o que, portanto, corrobora a afirmativa de Mearsheimer acerca da falsa promessa das instituições de garantirem a paz em um sistema anárquico.

Assim, em relação ao posicionamento internacional, percebe-se uma total negligência, advinda de um cálculo racional e estratégico, com o que se passava em Ruanda. O perigo a que estavam submetidos os ruandeses era justificado por meio da difusão de um discurso que defendia o conflito como algo inerente àquelas etnias. O "barbarismo" seria algo recorrente e inevitável daqueles povos, justificando, assim, a falta de atenção e a inércia da sociedade internacional (Power, 2004, p.398).

A ínfima importância de Ruanda para a política externa das grandes potências, como o Reino Unido e os EUA, somada aos interesses estratégicos franceses demonstram a precariedade da ONU como instrumento multilateral de representação da sociedade internacional e de defesa da vida humana despida de nacionalidade, raça, credo e etnia. Até mesmo o reconhecimento público de que estava em andamento um genocídio foi protelado em função de interesses do hegemon, uma vez que isso poderia implicar na obrigação de agir.

A ONU demonstrou ainda mais as suas limitações após a retirada do contingente belga, que ocorreu em função do assassinato de dez soldados dessa nacionalidade por hutus extremistas. Obrigada a decidir sobre o futuro da UNAMIR, já que os belgas constituíam a espinha dorsal da operação, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução 912, optou por diminuir para 270 o número de soldados, quando o conflito estava em plena escalada, o que agravou ainda mais a precária estrutura da missão de paz, que continuou mantendo sua neutralidade e aprofundou sua incapacidade enquanto a violência se intensificava cada vez mais.

Tal situação comprova, mais uma vez, uma atuação enviesada das Nações Unidas para favorecer e levar adiante o que era conveniente para as grandes potências, que manobravam a instituição segundo seus critérios egoísticos e que não identificavam qualquer interesse no dispêndio de recursos que poderiam ser utilizados para outras despesas estrategicamente mais vantajosas do que o salvamento daquelas vidas. Em suma, essas potências adotaram um comportamento conivente com a agressividade do Estado ruandês em face do desinteresse estratégico na questão, o que acarretou a inoperância da Convenção de 1948, já que ela e as demais instituições presentes no sistema são construídas para não conseguir agir de forma autônoma diante do desinteresse dos Estados mais poderosos. No caso de Ruanda, portanto, a Convenção contra o genocídio não adquiriu a efetividade necessária para cumprir os seus propósitos em função, de um lado, do desinteresse da maior parte das potências e, de outro, do interesse estratégico francês em manter boas relações com o governo ruandês, o que acarretou a continuidade impune dos massacres.

Quando a escalada do conflito tornou explícita a ocorrência do genocídio, a Resolução 918 autorizou o envio da UNAMIR II, com mandato similar ao da UNAMIR I, mas contando com o aumento do contingente para 5.500 soldados. Todavia, foi acordado, "por insistência norte-americana", que isso fosse feito "muito lentamente" (Gourevitch, 2006, p.147). De fato, esses soldados foram enviados tão lentamente que apenas em outubro a UNAMIR completou os 5.500 capacetes azuis autorizados em Ruanda.

Em junho de 1994, foi aprovado, por meio da Resolução 929 do Conselho de Segurança, o envio de uma segunda missão, a Operação Turquesa, paralela à UNAMIR, mas com a prerrogativa do uso da força, autorizada pelo cap. VII da Carta da ONU. A atuação dessa operação era extremamente dúbia por ser esta chefiada pela França, que sempre adotara uma postura pró-governo hutu, conforme já apontado anteriormente14. Em função disso, houve dúvidas se essa operação estaria protegendo de maneira igualitária tutsis e hutus. Mais uma vez aparece, dentro do próprio âmbito das Nações Unidas, o transbordamento dos interesses estratégicos em detrimento da proteção das vidas humanas em risco. Até este momento, o Conselho de Segurança havia aprovado poucas resoluções versando sobre o conflito de Ruanda, e apresentava grande resistência em definir o conflito como um genocídio. Seus membros permanentes realizavam manobras institucionais para enfatizar o caráter interno do conflito, de tal modo que o termo genocídio fosse evitado para que não se suscitasse uma possível obrigação de atuar em local de pouco interesse estratégico.

Assim, apesar da existência tanto da Convenção de 1948, quanto de claros atos genocidas em Ruanda15, a falta de evidências foi, durante todo o tempo, invocada para que as grandes potências pudessem se esquivar do envolvimento no conflito. Em função do seu comportamento auto-interessado, as potências estrangeiras só se fizeram presentes para evacuar seus cidadãos de Ruanda e, em momento algum, houve preocupação em repreender publicamente o governo ruandês pela violência a que vinha submetendo seus cidadãos.

Segundo Over (1999), especialistas estimam que tenham morrido no conflito entre 500.000 a um milhão de pessoas (Over, 1999, p.132). Em flagrante desrespeito à Convenção de 1948, durante 100 dias os hutus perseguiram e exterminaram em torno de oito mil tutsis por dia, sem que houvesse qualquer interferência externa (Power, 2004, p.569).

Nesse sentido, é possível perceber a inabilidade da Convenção de 1948 para a condução de ações autônomas, em face da complacência de grande parte das superpotências com a ação de génocidaires em áreas que não alimentavam seus interesses estratégicos.

Finalmente, em 30 de junho de 1994, a Comissão de Direitos Humanos da ONU publicou um relatório em que admitia a ocorrência de um genocídio no território ruandês. Aproximadamente um mês depois, a FPR tomou a capital e, dias mais tarde, foi instaurado o governo de união nacional presidido por Bizimbugu (Japiassú, 2004, p.105).

Tendo em vista o contexto supramencionado, é possível perceber que a Convenção de 1948 não foi capaz de produzir os efeitos pretendidos nem para prevenir, nem para impedir o genocídio de Ruanda durante a sua ocorrência, o que se deve à incapacidade desta e das demais instituições existentes no direito internacional em promover objetivos que se choquem com o caráter de maximização de poder das grandes potências. Isto porque estas conseguem flexibilizar princípios e manobrar instituições para que elas sirvam tão somente aos seus interesses, e não para produzirem custos que venham a ameaçar suas posições privilegiadas no sistema. Tal situação é possível porque tais instituições são construídas como meio de levar a cabo os verdadeiros interesses das superpotências, que propositalmente não dotam esses mecanismos de capacidade para conduzirem ações autônomas, de tal modo que a sua efetividade fica dependente da ação e da vontade desses Estados em cada caso.

Nesse sentido, sintetiza Kolodziej (2000):


A principal causa do fracasso se deve primeiramente à fraqueza de um sistema descentralizado de Estados como unidade de governança e ordem da sociedade mundial no qual cada Estado está preocupado com os seus interesses imediatos de segurança [...]. Essas...preocupações inibem de maneira crucial os esforços coletivos de se instaurar e institucionalizar um regime antigenocídio. Intervenções armadas e violações à soberania estatal, ainda quando intencionadas a pôr fim em um genocídio, vão contra aos interesses estatais conforme concebidos nos moldes atuais. Esse é especialmente o caso quando são os interessas das grandes potências que estão em jogo (Kolodziej, 2000, p.15).


        Tribunal Penal Internacional para Ruanda

Apesar da inação do sistema internacional para prevenir ou conter o genocídio de Ruanda, houve uma mobilização dos Estados para punir os responsáveis por esses atos após a ocorrência do genocídio, por meio da instauração do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR).

Segundo Forsythe (1983):


...os membros do Conselho de Segurança, principalmente os EUA, não quiseram incorrer nos custos prováveis de uma decisão de intervir em Ruanda[...]. Todavia, sentindo a necessidade de fazer algo, os Estados do Conselho criaram um segundo tribunal internacional...Logo, [...] não foi a consistência em relação à normas morais e legais que levaram o Conselho de Segurança a agir. Ao invés disso, foi a busca por uma via de ação tolerável que resultou na instauração de uma justiça criminal (Forsythe, 1983, p.100-101).


Power (2004) acrescenta que um tribunal havia sido recentemente instaurado para julgar os crimes cometidos na antiga Iugoslávia, onde ocorreu um número muito menor de mortes (Power, 2004, p.548). Nesse sentido, o Conselho de Segurança decidiu que o caso de Ruanda merecia a mesma atenção, para que não houvesse o questionamento da ordem internacional baseada -teoricamente - na supremacia dos direitos humanos, tal como esta foi arquitetada no pós - Segunda Guerra pelos Aliados. Estes países demonstravam interesse em que a ordem ideológica sobre a qual elas construíram sua legitimidade de ação não ruísse. É possível perceber, portanto, a existência de um contexto que demandava a punição desses crimes até mesmo para sustentar a existência de normas, como a Convenção de 1948, cuja importância havia sido tão ressaltada no pós-Segunda Guerra pelos mesmos países que, anos mais tarde, flexibilizariam suas letras.

A atitude do Conselho de Segurança não foi isenta de críticas. Autores como Baehr (1999) e Power (2004) afirmam que o fato de a competência do C.S. estar pautada em casos de ameaça à paz e à segurança internacional gerou um certo desconforto entre alguns membros da sociedade internacional, uma vez que inexistia uma previsão expressa acerca da possibilidade de autorizar a criação de um tribunal ad hoc por violações aos direitos humanos.

Portanto, o Conselho de Segurança precisou realizar uma interpretação mais elástica de sua competência para enquadrar o já consumado genocídio ruandês como um caso de ameaça à segurança internacional. Essa interpretação utilizou-se da grande quantidade de refugiados16 que se dirigiam às fronteiras do país, sob a alegação de que esse fluxo poderia acarretar um spill over do conflito (Power, 2004, p.548).

Mais uma vez, o que se observa é uma manobra institucional realizada pelos membros permanentes do Conselho com vistas a responder à existência da Convenção e a continuar sustentando o discurso de supremacia de direitos humanos, instituído no pós- II Guerra, para consolidar a supremacia moral dos países vitoriosos. Tal discurso foi de fato ignorado em Ruanda, mas era necessário mantê-lo vivo para permitir a margem de manobra das grandes potências de atuarem em um sistema onde imperam, ainda que apenas na teoria, os valores por elas instituídos e que servem como instrumentos construídos para o avanço brando e legítimo de seu poder no sistema internacional, uma vez que estes valores são aceitos como universais pelas demais partes dessa arena.

Nesse contexto, o TPIR foi aprovado, em novembro de 1994, por meio da Resolução 955 do Conselho de Segurança, por 14 votos a um, sendo de Ruanda o voto contrário17. Trata-se de um tribunal ad hoc, independente daquele para a antiga Iugoslávia, e sua sede localiza-se em Arusha, na Tanzânia. Já a Procuradoria e a Câmara de Apelação, comuns ao tribunal para a antiga Iugoslávia, estão sediados em Haia18. As atividades do Tribunal são regidas por um estatuto aprovado em anexo à resolução supramencionada.

Em relação à competência ratione materiae, o TPIR pode julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e violações ao art. 3º da Convenção de Genebra e de seu protocolo adicional. A competência ratione temporis limita-se aos atos cometidos entre 01/01/94 e 31/12/94 e as competências ratione personae et ratione loci destinam-se ao julgamento de crimes cometidos por ruandeses internamente ou em Estados vizinhos, e por não-ruandeses no território de Ruanda19.

O TPIR possui 89 celas individuais para a detenção dos acusados dentro do complexo prisional de Arusha, nos padrões estabelecidos internacionalmente. Visitas da Cruz Vermelha são autorizadas. Atualmente, estão detidos mais de 50 acusados, incluindo ministros, comandantes militares, líderes políticos, jornalistas e empresários20.

Especificamente no que diz respeito à punição do genocídio, o Estatuto do Tribunal repete em seu artigo 2º21º o tipo penal da Convenção de 1948, com a única diferença que no parágrafo 3º, alínea b, a palavra "associação" foi substituída por "conspiração (Fernandes, 2006, p.106)". Nesse sentido, a norma internacional de genocídio consolidada por meio da Convenção de 1948 foi repetida em sua integralidade, permitindo, assim, a punição dos hutus, sejam eles particulares, governantes ou funcionários, conforme dispõe originalmente o art. IV da Convenção, caso tenham cometido os atos que se enquadrem de acordo com os art. II e III do documento, todos reproduzidos pelo Estatuto do TPIR.

Desse modo, ao ser instituído, o TPIR colocou em prática o compromisso assumido no preâmbulo e no art. I da Convenção pelos quais os Estados signatários se comprometem a punir o crime de genocídio, julgando-o por uma corte internacional, caso o Estado perpetrador permaneça inerte, conforme previsto pelo art. VI que rege a competência do crime. Tal compromisso permitiu que 72 pessoas fossem presas e 33 acusados já estejam completamente julgados, de acordo com o site oficial do TPIR22.

Os trabalhos do Tribunal foram iniciados em novembro de 1995 e foi no ano de 1998 que, pela primeira vez, desde a entrada em vigor da Convenção de 1948, um tribunal penal internacional julgou um caso de genocídio. Esse Tribunal destacou-se, ainda, por reconhecer a violência sexual contra a mulher, por meio de estupros sistemáticos, como um ato de genocídio. Tal interpretação levava em conta que o genocídio não precisava necessariamente destruir, bastando que debilitasse o grupo de tal forma que o deixasse incapaz de perpetuação ou à margem da sociedade (Power, 2004, p.549; Schabas, 2000, p.164). O supramencionado demonstra como em alguns aspectos o TPIR conseguiu cumprir uma aplicabilidade dos princípios declarados da Convenção de proteção da diversidade humana, por meio da garantia de sobrevivência de seus diferentes grupos. Tal cumprimento é extremamente importante para a eficácia da promoção dos direitos humanos, pois ainda que se argumente que ele tenha sido construído com base nos interesses das grandes potências, é possível constatar a importância do respeito a um padrão mínimo desses direitos para a sobrevivência digna da pessoa humana em um sistema anárquico.

Por último, destaca-se que alguns casos relativos ao genocídio de Ruanda foram julgados por jurisdições nacionais. Como exemplo, é possível citar o caso de duas freiras católicas, além do professor universitário Vincent Ntzezimana e do ex-ministro Alphonse Higaniro, proprietário de uma fábrica de palitos de fósforo, que teria incentivado seus funcionários a exterminar tutsis. Todos os julgamentos supracitados ocorreram na Bélgica, com base em lei belga de 1993, que permite que seus tribunais nacionais julguem crimes de guerra, genocídio e violações dos direitos humanos, independentemente da nacionalidade do acusado e do local onde os atos foram cometidos (Fernandes, 2006, p.112-113).

Nesse sentido, é possível perceber que a Convenção de 1948, por meio das instituições ligadas a ela e dela oriundas, ainda que não desempenhe totalmente o papel ao qual se propõe, não pode ser considerada letra morta em sua totalidade. Ou seja, ainda que esta tenha sido construída como forma de levar a cabo certos propósitos não declarados, a tipificação do crime internacional de genocídio por ela instituído serviu para a punição a posteriori dos responsáveis pelo genocídio de Ruanda. Tal condenação é extremamente importante para a prevenção de futuros genocídios, já que gera a consciência de que há a punição dos perpetradores deste tipo de crime, tornando-o, assim, uma prática mais custosa. Todavia, conforme pode ser observado acima, essa efetividade da Convenção a posteriori continua condicionada ao juízo de oportunidade e à conveniência das grandes potências. Afinal, a instituição do TPIR foi feita pela necessidade desses Estados de darem uma resposta ao genocídio, como forma de manter viva a ordem internacional por eles sustentada. Tal ordem coloca as grandes potências como moralmente superioras aos Estados violadores de direitos humanos, aumentando, assim, a legitimidade de seu poder no sistema internacional. Ademais, tendo em vista a existência de um sistema anárquico que estimula a competição e, conseqüentemente, o comportamento agressivo por parte de seus atores, essa aplicabilidade a posteriori da Convenção não garante que novos genocídios não serão perpetrados ou que esta tenha passado a ser capaz de garantir a promoção da paz.



        Balanço final do genocídio

O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, assim como aquele instaurado para julgar os crimes da antiga Iugoslávia, foram as primeiras experiências de instauração de jurisdição internacional para julgar crimes de genocídio, desde a entrada em vigor da Convenção de 1948. O fato de se ter esperado até 1994 para que essa experiência pudesse ser implementada, ignorando outros genocídios que ocorreram antes - a exemplo do Camboja e da situação dos curdos no Iraque -, demonstram as dificuldades, em termos de eficácia, da Convenção, que deveria servir, na prática, para prevenir e punir o crime em questão.

Vale destacar aqui que, apesar de o TPIR representar um avanço, ainda que tardio, o estudo de caso realizado acima é capaz de demonstrar que as instituições internacionais existentes foram incapazes de prevenir e de intervir de maneira decisiva para mitigar o genocídio de Ruanda, simplesmente porque as grandes potências, como Inglaterra e EUA, não consideravam haver nada de relevante no tocante ao seu interesse nacional naquele país, enquanto a França apoiava o governo genocida, em função da expansão de sua influência e de seu poder na arena internacional.

Nesse sentido, afirma Kolodziej (2000):


A calamidade ruandesa expõe os principais constrangimentos que impedem os povos e os Estados da sociedade internacional de combater o genocídio. Esses constrangimentos comprometem os obstáculos que devem ser superados se houver a intenção de progresso no sentido de privilegiar o consentimento em detrimento da coerção na resolução de conflitos entre povos e Estados (Kolodziej, 2000, p.3).


Ademais, o fracasso da intervenção na Somália e o caráter predominante de imperativos da não-interferência, corolário do princípio da soberania, também contribuíram para a postura de inércia. Enquanto isso, os genocidas implementavam seus planos sem maiores dificuldades, e a Convenção de 1948 permanecia, pelo menos durante o genocídio, letra morta.

Ainda assim, o TPIR consistiu em um avanço, uma vez que possibilitou o debate entre promotores, advogados e acusados, permitindo que o planejamento dessas organizações pudesse ser traçado e seus perpetradores identificados (Power, 2004, p.565-566). O Tribunal aponta ainda, segundo Cançado Trindade (1999), para um maior monitoramento dos direitos humanos pela comunidade internacional (Trindade, 1999-2003, p.399).

Deve ser destacado que, mesmo com a instituição do tribunal, fica evidente pela análise acima que a ausência de interesse estratégico dos países mais poderosos torna ineficaz o caráter preventivo da Convenção de 1948, assim como a possibilidade de intervenção baseada somente em critérios morais. Uma vez que os Estados são guiados pela busca de ganhos relativos e pela maximização do seu poder, as instituições parecem representar nada mais que instrumentos a serviço dessa finalidade. A própria instauração do tribunal, apesar de ser um avanço para a norma internacional de combate ao genocídio, corrobora a dependência que a efetividade dessas previsões normativas possui em relação às grandes potências.

Entretanto, ao explicitar a intenção da punição dos criminosos por uma corte internacional, o TPIR dá um passo, ainda que inicial, para que a Convenção de 1948 adquira algum tipo de eficácia mais sólida. Isso porque, ainda que a prevenção do genocídio ruandês estivesse condicionada à conveniência das grandes potências, o Tribunal funciona como aviso aos perpetradores em potencial de que estes não ficarão impunes; além de fazer justiça à consciência das vítimas e da própria sociedade internacional.

O caso de Ruanda demonstra que ainda há muito a ser feito para que a Convenção venha a ter efetividade plena no mundo dos fatos. Segundo Melvern e Williams (2004), esse genocídio demonstra não apenas a dificuldade de fazer os Estados agirem de acordo com o direito internacional, mas também a necessidade de se estimular uma efetiva ação dos Estados diante da ocorrência de um genocídio (Melvern & Williams, 2004, p.3), que vá além da simples construção de um argumento legal persuasivo.


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Notas



1A Convenção de 1948 define como genocídio: "Artigo II: Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
(a) matar membros do grupo;
(b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
(c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;
(d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
(e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo."

2O presente trabalho entende paz não apenas como a ausência de guerra à qual Mearsheimer se limita, mas também como estabilidade interna dos Estados e não transbordamento de eventos domésticos para o plano internacional.

3Entende-se, aqui, por instituição "um conjunto de regras que estipula caminhos para a cooperação e a competição entre atores estatais". Essas regras são negociadas entre os Estados e prescrevem comportamentos estatais aceitáveis, assim como condenam comportamentos considerados inaceitáveis. MEARSHEIMER, John, op. Cit., p. 333.

4Estima-se que aproximadamente 200.000 tutsis tenham se refugiado em países vizinhos na região dos Grandes Lagos como, por exemplo, Uganda, Burundi, Zaire e Tanzânia, em função do domínio hutu.

5Vale destacar que rebeliões de hutus contra tutsis vinham acontecendo desde antes da independência, o que já demonstrava um quadro de deterioração na segurança regional. Fernandes destaca o ano de 1959 como o início desses massacres. FERNANDES, David Augusto. Tribunal Penal Internacional: a concretização de um sonho. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 96.

6O contingente da UNAMIR estava programado para possuir 4260 soldados, tendo esse número sido reduzido para 2548 pelo Conselho de Segurança, o que foi justificado pelas Nações Unidas em função do apoio que o acordo de paz possuía de ambos os lados. Ver KOLODZIEJ, op. Cit., p. 12; BARNETT, M. ; FINNEMORE, M., op. Cit., p. 139.

7Até hoje há dúvidas quanto à autoria do atentado em questão, pois, apesar de ser hutu, o presidente era considerado como moderado demais por ter sentado à mesa de negociação com as forças rebeldes. Um dos principais suspeitos é o atual presidente do país, Paul Kagame, cujo julgamento foi requerido pela França ao Tribunal Penal Internacional para Ruanda.

8As motivações desse comportamento francês serão avaliadas mais adiante.

9Destaca-se o caso de duas freiras condenadas anos mais tarde por terem participado de um massacre e por terem fornecido galões de gasolina a extremistas hutus para queimar entre 500 a 700 pessoas. FERNANDES, op. Cit., p. 112.

10"Artigo III: Serão punidos os seguintes atos:

(a) o genocídio;
(b) a associação de pessoas para cometer o genocídio;
(c) a incitação direta e pública a cometer o genocídio;
(d) a tentativa de genocídio;
(e) a co-autoria no genocídio"

11Em 1992, A ONU autorizou o envio de uma operação de paz à Somália (UNOSOM I) com o objetivo de criar um ambiente de conciliação política e de enviar assistência humanitária para o país. Essa operação foi a primeira de caráter multifuncional da organização. Ou seja: pela primeira vez, houve o envio de uma operação cujos objetivos iam além da mera observação do acordo de cessar-fogo, mas buscavam também restaurar a ajuda humanitária para a população do país. Havia uma crença generalizada de que a operação seria rápida e de baixo custo para a organização. Todavia, a presença da ONU na Somália se estendeu inesperadamente até 1995. A atuação da organização foi considerada um verdadeiro fracasso, principalmente a partir de outubro de 1993, quando 18 soldados foram assassinados e arrastados pelas ruas da capital, Mogadishu, o que levou os EUA a anunciarem a retirada de suas tropas da operação. Nesse sentido, ver LEWIS, Ioan and MAYALL James. Somalis IN: Mayall, James. The new interventionism 1991-1994: United Nations experience in Cambodia, former Yugoslavia and Somalia. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 94-124.

12"Considerando que a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em sua Resolução n. 96 (I), de 11 dezembro de 1946, declarou que o genocídio é um crime contra o Direito Internacional contrário ao espírito e aos fins das Nações Unidas e que o mundo civilizado condena;

Artigo I: As Partes Contratantes confirmam que o genocídio, quer cometido em tempo de paz, quer em tempo da guerra, é um crime contra o Direito Internacional, que elas se comprometem a prevenir e a punir."

13Artigo V: As Partes Contratantes assumem o compromisso de tomar, de acordo com suas respectivas constituições, as medidas legislativas necessárias a assegurar a aplicação das disposições da presente Convenção e sobretudo a estabelecer sanções penais eficazes aplicáveis às pessoas culpadas de genocídio ou de qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III.

14Trata-se de conduta da política externa francesa a tentativa de manter a influência sobre países africanos de língua francesa para que isso conte como capital político a seu favor em negociações internacionais.

15Power classifica o genocídio de Ruanda como "o mais claro caso de genocídio desde o Holocausto". POWER, op. Cit., p. 548.

16Estima-se que o número de refugiados ruandeses tenha sido de aproximadamente 2 milhões de pessoas. Cf UNITED NATIONS. The Blue Helmets: a review of the United Nations Peace-keeping. New York: United Nations, 1996, p. 356.

17Dentre os motivos alegados pelo governo ruandês destacam-se a competência temporal limitada ao ano de 1994, o que impediria a condenação dos atos preparatórios que datam de muito antes. Ademais, Ruanda considerou que a estrutura do tribunal seria inadequada, tanto por ter sua sede oficial em território estrangeiro (Arusha, Tanzânia), como também pela distância das instituições comuns ao tribunal da ex-Iugoslávia, o que poderia colocar em risco a eficácia dos julgamentos. O governo de Ruanda preocupava-se ainda com a participação no tribunal de países como a França, por exemplo, que havia apoiado os hutus. Por fim, o governo se opôs ainda à impossibilidade de aplicação da pena capital, admitida pelo código penal interno. Cf. FERNANDES, op. Cit., p. 102-3.

18Em relação à estrutura, o TPIR conta com 3 câmaras, duas de primeira instância e uma de apelação, sendo os juízes dessa última câmara, assim como o Procurador, os mesmos do TPI para a ex-Iugoslávia, conforme os art. 12, paragráfo 2ordm; e art. 15, parágrafo 3º do Estatuto do Tribunal. Cf Fernades, op. Cit., Idem, p. 101. Vale frisar aqui que a estrutura do TPIR não é a ideal. Além de dispersa, ela é considerada insuficiente e precária. Fernandes relata que o Procurador enfrentou carências na infra-estrutura como, por exemplo, ausência de tradutor para ajudá-lo na análise das gravações da rádio de Ruanda (RTLM), uma das principais responsáveis por incentivar o genocídio. Power, por sua vez, cita interrupções nos serviços telefônicos, ausência de acesso à internet e o pouco suporte para pesquisa. Somam-se a esses exemplos casos de corrupção e nepotismo. Ademais, outro fator problemático é o desinteresse do povo ruandês pelos trabalhos do Tribunal, não só pela lentidão e pela falta de divulgação, mas também porque este simplesmente não é reconhecido como legítimo pela população local. Cf. FERNANDES, op. Cit., p. 108 e POWER, op. Cit., p. 561-3.

19International Criminal Tribunal for Rwanda. Disponível em: <www.ictr.org>. Acesso em: 25/06/2007.

20International Criminal Tribunal for Rwanda. Disponível em: <www.ictr.org>. Acesso em: 25/06/2007.

21Estatuto do TPIR - Art. 2º: "1. O Tribunal Penal Internacional para Ruanda terá competência para julgar as pessoas que cometam atos de genocídio definidos no parágrafo 2 ou qualquer dos demais atos enumerados no parágrafo 3 deste artigo.

2. Por genocídio se entenderá qualquer dos atos a seguir, perpetrados com a intenção de destruir, total ou parcialmente, a um grupo nacional, étnico, racial ou religioso como tal:
a) Assassinato de membros do grupo;
b)Lesões graves a integridade física ou mental dos membros do grupo;
c) Submetimento intencional do grupo a condições de vida que possam acarretar sua destruição física, total ou parcial;
d) Imposição de medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo
3. Serão puníveis os seguintes atos:
a) o genocídio;
b) a conspiração para cometer genocídio;
c) o incitamento, direto e público, ao genocídio;
d) a tentativa de genocídio;
e) a cumplicidade no genocídio".

22A lista completa dos acusados encontra-se disponível em < http://69.94.11.53/default.htm >. Acessado em: 25/06/2007.