Paula Drumond Rangel Campos1
Resumo
1Paula Drumond Rangel Campos é bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e tornou-se bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em dezembro de 2007. Atualmente é mestranda em Relações Internacionais na instituição. Introdução
O presente trabalho visa analisar o papel desempenhado pela norma de combate ao genocídio na prática internacional, por meio do estudo de caso do genocídio de Ruanda, tendo como base o comportamento da sociedade internacional frente às atrocidades cometidas pelo governo hutu na década de 90. A reflexão acerca da efetividade dessa norma se apoiará no seu principal instrumento tipificador: a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio de 19481.
Nesse sentido, será possível perceber que a Convenção só adquire algum tipo de eficácia quando serve aos propósitos de contribuir para a segurança e a prosperidade dos Estados mais poderosos, tendo em vista que em um ambiente onde predomina a competição, os atores estatais, sendo racionais, só colaboram na medida do seu auto-interesse, pois temem arriscar sua posição em uma arena caracterizada por incertezas e possibilidades de trapaça. Por fim, a análise que se seguirá identificará que, apesar das incapacidades, a Convenção não é uma letra morta em sua totalidade. Ela produziu uma eficácia a posteriori, quando foi instaurado o Tribunal Penal Internacional para julgar os crimes cometidos em Ruanda em 1994. Acredita-se, aqui, que a produção desses efeitos teve como fator determinante o interesse dos Estados que formularam esse documento. Tais Estados tiveram como objetivo dar à convenção algum tipo de eficácia, não apenas para se resguardarem de futuros genocídios, mas também para manter vivo o ambiente ideológico humanista que eles lutaram para desenhar no pós-Segunda Guerra. Segundo a leitura realista, o discurso de preservação de direitos humanos que emerge com a instituição do Tribunal de Nuremberg revela não a existência de valores comuns, mas sim de interesses específicos dos atores mais poderosos, que conseguiriam, dessa forma, impor a sua voz no sistema internacional. Nesse sentido, essa consciência dita "universal" seria proveniente não de uma unidade ou da existência de um bem comum inerente a todos os seres humanos, mas sim da sobreposição de um discurso maximizador de poder, que consegue se impor no sistema internacional anárquico justamente porque provém das vozes mais poderosas, que, por sua vez, utilizam-no para a manutenção de seu status quo. A manutenção desse discurso passa a servir ao objetivo desses atores porque impõe códigos de conduta traçados de acordo com seus interesses específicos, os quais, ao se consolidarem, reduzem não somente os custos de barganha em sua relação com os demais atores, mas também facilitam a racionalização da dominância do mais forte. Com o objetivo de comprovar que a Convenção de 1948 foi incapaz de promover os objetivos aos quais se propõe, o presente trabalho traçará primeiramente um breve panorama do conflito ruandês, buscando familiarizar o leitor com suas origens, e analisará o comportamento internacional ao longo de sua intensificação, de modo a demonstrar como as prescrições deste documento possuíram um impacto irrisório na conduta desses atores durante o genocídio. Em seguida serão apontados seus efeitos após o genocídio, por meio da instituição do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, comprovando, assim, que há algum tipo de eficácia advinda da Convenção, ainda que esta continue conectada aos arbítrios das grandes potências. O conflito Ruanda é uma das menores e mais pobres nações do continente africano (Magnarella, 2005, p.802). O país possui uma densa população, cuja maioria se concentra no trabalho rural, dominado por fazendeiros de subsistência, que dependem dos escassos recursos naturais provenientes de seu território montanhoso (Magnarella, 2005, p.818). Tendo em vista a escassez de recursos que pudessem interessar a outros países e a sua posição pouco estratégica - bem no meio do continente africano, entre Uganda, Tanzânia, Burundi e Congo -, pode-se afirmar que Ruanda tem importância ínfima no equilíbrio de poder do sistema e, conseqüentemente, dispõe de pouca visibilidade internacional. Em Ruanda constata-se a presença dominante de três etnias: os hutus, que representam a maioria da população ruandesa; os tutsis, que representavam por volta de 15% da população à época do genocídio e, por fim, os twas, que constituíam apenas 1% da população ruandesa. Os primeiros praticavam predominantemente atividades agrícolas, enquanto os segundos se concentravam na pecuária. Tutsis e hutus conviviam dentro do mesmo território, diferenciando-se mais pelas atividades econômicas que praticavam, uma vez que falavam a mesma língua, possuíam a mesma religião e eram praticamente indistinguíveis fisicamente. Percebe-se, contudo, que após a dominação colonial da Alemanha e, mais tarde, da Bélgica, passou a ser aprofundada pela metrópole uma política de diferenciação entre os dois grupos. Segundo Barnett e Finnemore (2004):
Os belgas, portanto, concederam à minoria tutsi um status de elite, calcado em critérios físicos como, por exemplo, o tamanho do crânio e o formato do nariz, mantendo a população segregada. A ênfase na superioridade dos tutsis era um processo simultâneo à marginalização da maioria hutu. Por meio dessa política, a metrópole mantinha a população ruandesa dividida, impedindo, dessa forma, que esses grupos se vissem como uma unidade capaz de se unir para questionar o poder central, ameaçando, assim, sua posição no sistema internacional. Com o fim da colonização belga e a independência do país em 1962, os hutus conseguiram tomar o poder e passaram a governar o país e a tratar com hostilidade a minoria tutsi, perpetuando a divisão étnica e o passado de subordinação de uma etnia em detrimento da outra. A dominação hutu durou praticamente três décadas e levou grande parte da população tutsi a se refugiar em Estados vizinhos4, já que estes eram alvos de ataques da maioria rival5 . Com a chegada dessa massa de refugiados a partir da década de 60, o governo de Uganda - destino freqüente de tutsis - passou a financiar e a treinar milícias desses refugiados contra o governo ruandês. A partir de então, foi estabelecida uma espécie de "guerra civil constante" entre o governo ruandês, apoiado por França e Bélgica, e os refugiados tutsis, apoiados por Uganda (Kolodziej, 2000, p.14). Nesse contexto de discriminação histórica, em 1990, uma milícia armada formada por tutsis exilados - a Frente Patriótica Ruandesa (FPR) - invadiu Ruanda com vistas a depor o governo hutu, assim como a conseguir o repatriamento dos refugiados tutsis. Tal campanha acabou por iniciar uma guerra civil, cujo cessar-fogo só foi estabelecido três anos depois, por meio dos chamados Acordos de Arusha. Esses acordos instituíram um governo compartilhado entre as duas etnias e a supervisão inicial do cessar-fogo pelas forças de paz da ONU. Os extremistas hutus, todavia, temendo perder seus privilégios políticos e retornar ao passado de submissão e repressão, estavam dispostos a sabotar o acordo em questão para garantir a sua permanência no poder. Foi nesse contexto que o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu a United Nations Assistance Mission for Rwanda (UNAMIR), a missão da ONU responsável por monitorar a paz instituída pelos Acordos de Arusha; garantir a segurança, a desmilitarização e a integração da FPR às forças armadas; e estabelecer uma zona desmilitarizada na capital, Kigali. A UNAMIR foi autorizada por meio da Resolução 872, e previa o envio de um contingente de 2.548 soldados6, sendo a maioria deles nacionais da Bélgica. Seu mandato, vale dizer, visava tão somente à implementação dos objetivos supramencionados, previstos em Arusha. A força só poderia ser usada para a autodefesa do contingente. Destaca-se que, desde essa época, a inteligência americana já tinha previsões acerca da possibilidade da escalada do conflito étnico em Ruanda, a despeito dos acordos de paz. Nada foi feito, contudo, para evitá-lo. Samantha Power (2004) atribui essa inércia a uma confiança extrema da diplomacia americana no cumprimento dos acordos de paz (Power, 2004, p.396-397). Tal confiança demasiada, explicitada por Power, pode ser melhor explicada pela visão de Mearsheimer (1998) acerca do desinteresse e do descompromisso das grandes potências com causas que não sirvam ao seu propósito maior de garantia da sobrevivência por meio do ganho de poder relativo. Nesse sentido, a confiança no cumprimento de um acordo tão fraco era, na verdade, o desinteresse de um comprometimento maior com uma região e com uma causa que não dizia respeito às questões de segurança dessas grandes potências. Nesse sentido, afirma Mearsheimer (1998):
Assim, é possível perceber o fraco comprometimento das grandes potências com instituições que não sirvam aos seus objetivos de segurança e, portanto, de maximização de poder. A falta de interesse estratégico em uma região que não era capaz de contribuir significativamente para alterar a dinâmica do equilíbrio de poder demonstra, nesse sentido, a dificuldade de cooperação e, conseqüentemente, a "falsidade" das promessas dessas instituições de promover a paz e a estabilidade, principalmente em questões não relacionadas diretamente com o interesse racional estatal de auto-preservação na lógica sistêmica de competição e falta de confiança, na qual esses atores estão inseridos. Em 6 de abril de 1994, a derrubada do jato que transportava o presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana - que governava o país desde o golpe de 1973 - e do Burundi, Cyprien Nytaryamira7, intensifica a crise ruandesa, não somente em relação aos massacres dos tutsis pelos hutus, retomados logo no dia seguinte, mas também em relação às instituições do país. A primeira-ministra, para quem o poder passaria após o atentado, foi perseguida e morta por sua posição moderada (Power, 2004, p.381) e, em função disso, Ruanda passou a ser governada por um grupo hutu do alto comando militar, responsável pela confecção do plano de execução dos tutsis. A partir de então, iniciou-se o massacre sistemático de tutsis e hutus moderados por hutus radicais, incentivados a atacar os seus inimigos que, teoricamente, teriam a intenção de destruí-los (Fernandes, 2006, p.97). Os ataques aos tutsis obviamente acarretavam retaliações contra os hutus que, por sua vez, "confirmavam" a intenção dos tutsis de massacrá-los, gerando uma espécie de profecia auto-realizável. A partir de então, listas passaram a ser divulgadas via rádio, com nomes de tutsis e hutus moderados que deveriam ser encontrados e mortos, sem que houvesse qualquer tentativa da sociedade internacional de interromper esse tipo de comunicação. Aproximadamente 8.000 pessoas eram mortas por dia em uma mobilização que envolvia a população como um todo (Power, 2004, p.569) Em relação à Convenção, é possível perceber que a situação ruandesa se enquadrava no tipo previsto pelo art. II, uma vez que consistiam em atos previstos, no mínimo, nas alíneas "a" ("matar membros do grupo"), "b" ("causar lesão grave à integridade de física ou mental de membros do grupo") e "c" ("submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial"), todos planejados e cometidos pelos hutus com a intenção de destruir o grupo tutsi. Mesmo assim, a sociedade internacional e suas instituições responsáveis pela promoção da paz permaneciam inertes diante da deterioração da segurança de Ruanda, uma vez que a situação do país não interferia em questões relacionadas ao auto-interesse das grandes potências. Ou seja, por não ser um país cuja estabilidade afetasse o equilíbrio de poder do sistema internacional e, conseqüentemente, o status quo dos Estados mais poderosos, as instituições presentes no sistema, construídas em cima do ideal de manutenção da estabilidade, não eram capazes de atuar de maneira independente a favor de um Estado insignificante ao equilíbrio de poder. O comportamento da sociedade internacional e de suas instituições demonstra, portanto, a dificuldade de se atingir a cooperação internacional em uma questão que não afete a segurança das grandes potências. Isso não significa dizer que não possa haver essa colaboração, mas que ela é difícil de ser alcançada, caso não envolva diretamente o interesse de maximização de poder desses atores. Nas palavras de Mearsheimer (2001):
Ainda no que concerne à aplicabilidade da Convenção ao caso ruandês, é interessante destacar que o grau de planejamento envolvido no genocídio ruandês é significante e comprova o elemento intencional de destruição do grupo tutsi, requisito previsto pelo caput do art. II, corroborando assim a possibilidade de enquadramento no caso como genocídio. As milícias hutus haviam sido treinadas com esse objetivo de perseguição e destruição e recebiam apoio do governo nacional e do exército, assim como de alguns países, como a França8, por exemplo, apesar das claras violações aos direitos humanos impetradas pelo governo ruandês. Tal situação demonstra o descomprometimento com acordos internacionais, dentre eles a Convenção de 1948 e os regimes de direitos humanos, quando a questão em jogo é o ganho de poder relativo. Vale destacar que a matança envolvia pessoas muito próximas entre si, como parentes e vizinhos. Até mesmo religiosos participavam do extermínio organizado9. Os massacres eram realizados em mutirão, com armas como machetes, que requerem muita proximidade entre a vítima e o genocida. Esses atos tinham hora para começar e acabar, ou seja: havia uma rotina envolvida no genocídio. A campanha de matança era difundida pela rádio local, a Radio-Télévision Libre des Milles Collines (RTLM), por meio da qual se divulgavam os nomes das vítimas a serem mortas a cada dia. Tais situações são perfeitamente indicadas e puníveis de acordo com o art. III da Convenção, que prevê a punição não somente da perpetração dos atos, mas também da associação de pessoas para cometer o crime, tal como se dava nesses mutirões organizados. Destaca-se ainda a existência da incitação pública e direta para cometer tais crimes, o que era feito tanto por esses mutirões em si, que incentivavam abertamente a perseguição de tutsis por meio, por exemplo, de músicas e gritos de guerra que os identificam como "baratas" a serem eliminadas; como também pelos meios de comunicação de Ruanda, dentre os quais se destacam a RTLM, que emitia diariamente discursos que incentivavam os massacres, além de nome e endereço daqueles que deveriam ser perseguidos10. A inércia das Nações Unidas diante da escalada de violência que vitimava aproximadamente 333 civis por hora (Gourevitch, 2006, p.130) costuma ser atribuída à emergência de uma nova mentalidade da instituição, oriunda do fracasso da organização na Somália11.A partir desse episódio, a ONU passou a limitar os casos de atuação de forças da organização, com vistas a tentar resgatar sua credibilidade. Tal situação demonstra o comprometimento, em função de pretensões meramente políticas, da efetividade do preâmbulo e do art. I da Convenção que reconhece o genocídio como crime contra o direito internacional e contra o qual as partes prometem se engajar12. Nesse sentido, a preservação da organização passou a se tornar um fim em si mesmo, e não um meio para alcançar os objetivos estabelecidos na sua Carta ou nas convenções realizadas em seu âmbito, tal como é o caso da Convenção de 1948. Ademais, essa constatação é capaz de comprovar a incapacidade das instituições em atuarem para alcançar a paz, uma vez que estas são construídas como instrumentos de poder manobráveis por Estados que forjam princípios para tornar mais brando e legítimo o exercício do seu poder frente aos demais. Em suma, os Estados que constroem as instituições têm como foco o ganho relativo de poder para a manutenção de seu status quo. Logo, tais instituições só funcionam enquanto maximizadoras de poder dentro dessa lógica. Por esse motivo, os dispositivos da Convenção de 1948 foram construídos para terem a sua efetividade dependente da discricionariedade de cada Estado, o que pode ser auferido pela leitura do art. V do documento, que trata da questão da repressão do genocídio apenas delegando às partes a tarefa de assegurar internamente a aplicação dos dispositivos da Convenção e estabelecer as sanções penais que serão aplicadas aos responsáveis pelo crime13. No caso de Ruanda, é possível perceber, portanto, como as grandes potências desviaram os fins escritos na Convenção de 1948 a favor de fins não escritos nesse instrumento: a maximização de poder relativo de seus arquitetos. Ao insistirem na manutenção de uma força para monitorar um cessar-fogo que já havia entrado em colapso com o início dos massacres de civis e que, por isso, era incapaz de lidar com a deterioração da segurança de Ruanda, torna-se claro que não interessava aos Estados em questão despender seus recursos com propósitos não relacionados a sua perseguição por poder relativo. Além do caráter sistêmico da conduta de preservar a sobrevivência em um ambiente anárquico através da busca pela hegemonia, o presente trabalho defende ainda a influência de variáveis domésticas dessas grandes potências no seu comportamento externo em relação a Ruanda. Destarte, ainda que essas variáveis extrapolem o marco realista aqui utilizado, elas serão consideradas neste trabalho, pois acreditamos que apesar de o realismo ofensivo de Mearsheimer ser o mais adequado para explicar as questões aqui analisadas, nem esta nem nenhuma outra teoria é completa o suficiente para esgotar as complexidades da realidade deste conflito. Os britânicos, portanto, agiam condicionados também por sua agenda internacional euro-atlântica, calcada em uma relação especial com os EUA, que, à época, estava dominado por um congresso contrário às políticas de intervenção da ONU, em função do fracasso supramencionado ocorrido na Somália (Melvern & Williams, 2004, p. 3, 9). Por isso, apoiar uma ação mais sólida em Ruanda poderia enfraquecer os laços com os americanos, custo com o qual o Reino Unido não estava disposto a arcar. Ademais, deve ser destacado ainda o envolvimento dos britânicos na Bósnia, o que fazia com que o país quisesse se manter afastado de outras questões que pudessem trazer ainda mais custos políticos. Por fim, a política externa do Reino Unido estava mais focada nos assuntos da Comunidade das Nações (Commonwealth) e da África anglófona, o que tornava Ruanda uma questão de interesse apenas indireto, em função do seu possível impacto nas relações franco-inglesas. François Mitterrand, presidente francês à época, alegava a existência de uma conspiração anglo-saxônica para aumentar a influência inglesa no continente africano, tendo em vista o financiamento da FPR por Uganda, antigo protetorado britânico. Nesse sentido, o escasso esforço britânico na questão ruandesa deve-se ao esforço pela não deterioração de suas relações com os franceses (Melvern & Williams, 2004, p.9), que apoiavam o governo ruandês como instrumento de sua política externa. Os americanos, conforme dito anteriormente, estavam dominados por um congresso anti-ONU, impregnado das lembranças do fracasso na Somália, o que gerou um clima contrário ao engajamento do país em ações humanitárias que não servissem ao seu interesse nacional. O dispêndio de recursos com tais propósitos poderia comprometer a posição hegemônica do país, o que seria incompatível com seu propósito de maximização de poder e hegemonia para a preservação de sua segurança em um sistema de auto-ajuda. Nesse contexto foi aprovada a Presidential Decision Directive 25 (PDD-25), em maio de 1994, que continha critérios bastante estreitos para permitir a aprovação de missões da ONU, impedindo assim o comprometimento dos recursos do país em questões não condizentes com o seu auto-interesse e cujo envolvimento poderia minar a sua posição privilegiada no sistema. De acordo com Mearsheimer (2001), "somente um Estados que realize um julgamento enganado perde a oportunidade de se tornar o hegemon do sistema por pensar que já possui poder suficiente para garantir a sua sobrevivência" (Mearsheimer, 2001, p.35). Assim, segundo os critérios da PDD-25, os EUA argumentavam que não cabia a ampliação da ação da ONU em Ruanda (Melvern & Williams, 2004, p.7). Tendo em vista os fatores supramencionados, o governo norte-americano decidiu negligenciar a escalada do conflito em Ruanda simplesmente porque admitir a necessidade de agir em um país pouco atrativo traria enormes custos a Washington, não apenas pelo dispêndio de recursos econômicos, mas também pelo custo político que um outro fracasso traria interna e externamente, uma vez que isso poderia minar a legitimidade e o poder do país no cenário internacional. Nesse sentido, o Estado americano preferia envolver seus recursos disponíveis em questões estratégicas condizentes com a maximização de poder relativo, capaz de consolidar a sua hegemonia. Destarte, como a questão de Ruanda não afetava o cálculo racional de equilíbrio de poder norte-americano, Washington preferiu permanecer inerte. O governo francês, por sua vez, adotava uma linha de política externa que tinha como objetivo a manutenção de boas relações com os países francófonos, com vistas a aumentar a sua influência na África e a fortalecer os exércitos desses países após a descolonização, para que eles funcionassem como braços do exército francês fora do país (McNulty, 2000, p.109). Por meio dessa política, a França visava a fortalecer a sua posição no sistema internacional a partir da expansão de sua influência nos países com os quais possuía afinidade lingüística. Nesse contexto, o interesse nacional francês permitiu que o país se tornasse um dos maiores aliados de Habyarimana e continuasse apoiando o governo hutu após a sua morte. Além disso, o governo francês era o maior fornecedor de armas a Ruanda, promovendo a sua militarização, assim como o treinamento do exército ruandês, principalmente a partir da invasão de Ruanda pela FPR, em 1990. A partir deste momento passa a haver no país a presença militar direta de tropas francesas a favor de Habyarimana (McNulty, 2000, p.109-110). Estima-se que a França tenha fornecido às milícias aproximadamente seis milhões de dólares em armas entre 1992 e 1994 (McNulty, 2000, p.113). O envio se prolongou mesmo após o início do genocídio e a despeito das evidências de violações aos direitos humanos levadas a cabo pelo governo ruandês. Nem mesmo o embargo de armas, imposto em maio pela Resolução 918 do Conselho de Segurança, foi suficiente para conter o governo francês (McNulty, 2000, p.116-7). Como conseqüência da atuação francesa, destaca Mcnulty (2000): "A militarização externa de Ruanda foi um fator-chave [...] para a intransigência dos governantes daquele Estado [...]. A manutenção do apoio francês[...] convenceu os extremistas que tal apoio continuaria a ser garantido no futuro" (McNulty, 2000, p.121). Portanto, as posturas e os cálculos anteriormente citados das grandes potências deixam evidentes que esses países buscam a sua maximização de poder e, para tal, realizam cálculos de custo-benefício antes de se envolverem em questões que causem um dispêndio excessivo de recursos que possam ameaçar a sua posição no sistema internacional. Isso porque os Estados "estão preocupados primordialmente com a distribuição de capacidades materiais" (Mearsheimer, 2001, p.36) e, em função disso, limitam sua atuação a questões que tragam vantagens estratégicas ou que não acarretem custos excessivos, o que pode enfraquecer a economia e minar o seu poder (Mearsheimer, 2001, p.37). Assim,
Por isso, os Estados podem até formar alianças ou criar instituições, mas, de acordo com Mearsheimer (1998), elas funcionam apenas como "casamentos de conveniência" a serviço dos interesses egoísticos e da maximização de poder desses Estados (Mearsheimer, 2001, p.33). Tal situação explica a incapacidade dessas instituições de promoverem a paz ou de estarem a serviço de princípios acima dos interesses de segurança das grandes potências. A Convenção de 1948 é emblemática para ilustrar essa questão. Apesar de ter sido realizada com o propósito declarado de prevenir e combater o genocídio, sua existência não conseguiu compelir os Estados signatários a agirem de maneira adequada para colocar em prática seus dispositivos. Pelo contrário, a existência da Convenção foi ignorada justamente para que não houvesse o reconhecimento de um genocídio em andamento, evitando assim alguma postura mais ativa por parte dos Estados. Como os seus dispositivos foram arquitetados para dependerem totalmente da postura individual dos atores estatais para adquirirem algum tipo de efeito na prática, a existência do documento per se não incitava qualquer tipo de atuação ou responsabilidade direta dos seus ratificantes pelo que estava ocorrendo em Ruanda. Em suma, é possível perceber como a Convenção de 1948 não conseguiu cumprir seu propósito de prevenir e punir o genocídio em andamento porque ela, assim como as demais instituições, foi desenhada para produzir efeito somente quando servisse ao cálculo racional de ganho de poder relativo dos atores envolvidos, o que, portanto, corrobora a afirmativa de Mearsheimer acerca da falsa promessa das instituições de garantirem a paz em um sistema anárquico. Assim, em relação ao posicionamento internacional, percebe-se uma total negligência, advinda de um cálculo racional e estratégico, com o que se passava em Ruanda. O perigo a que estavam submetidos os ruandeses era justificado por meio da difusão de um discurso que defendia o conflito como algo inerente àquelas etnias. O "barbarismo" seria algo recorrente e inevitável daqueles povos, justificando, assim, a falta de atenção e a inércia da sociedade internacional (Power, 2004, p.398). A ínfima importância de Ruanda para a política externa das grandes potências, como o Reino Unido e os EUA, somada aos interesses estratégicos franceses demonstram a precariedade da ONU como instrumento multilateral de representação da sociedade internacional e de defesa da vida humana despida de nacionalidade, raça, credo e etnia. Até mesmo o reconhecimento público de que estava em andamento um genocídio foi protelado em função de interesses do hegemon, uma vez que isso poderia implicar na obrigação de agir. A ONU demonstrou ainda mais as suas limitações após a retirada do contingente belga, que ocorreu em função do assassinato de dez soldados dessa nacionalidade por hutus extremistas. Obrigada a decidir sobre o futuro da UNAMIR, já que os belgas constituíam a espinha dorsal da operação, o Conselho de Segurança, por meio da Resolução 912, optou por diminuir para 270 o número de soldados, quando o conflito estava em plena escalada, o que agravou ainda mais a precária estrutura da missão de paz, que continuou mantendo sua neutralidade e aprofundou sua incapacidade enquanto a violência se intensificava cada vez mais. Tal situação comprova, mais uma vez, uma atuação enviesada das Nações Unidas para favorecer e levar adiante o que era conveniente para as grandes potências, que manobravam a instituição segundo seus critérios egoísticos e que não identificavam qualquer interesse no dispêndio de recursos que poderiam ser utilizados para outras despesas estrategicamente mais vantajosas do que o salvamento daquelas vidas. Em suma, essas potências adotaram um comportamento conivente com a agressividade do Estado ruandês em face do desinteresse estratégico na questão, o que acarretou a inoperância da Convenção de 1948, já que ela e as demais instituições presentes no sistema são construídas para não conseguir agir de forma autônoma diante do desinteresse dos Estados mais poderosos. No caso de Ruanda, portanto, a Convenção contra o genocídio não adquiriu a efetividade necessária para cumprir os seus propósitos em função, de um lado, do desinteresse da maior parte das potências e, de outro, do interesse estratégico francês em manter boas relações com o governo ruandês, o que acarretou a continuidade impune dos massacres. Quando a escalada do conflito tornou explícita a ocorrência do genocídio, a Resolução 918 autorizou o envio da UNAMIR II, com mandato similar ao da UNAMIR I, mas contando com o aumento do contingente para 5.500 soldados. Todavia, foi acordado, "por insistência norte-americana", que isso fosse feito "muito lentamente" (Gourevitch, 2006, p.147). De fato, esses soldados foram enviados tão lentamente que apenas em outubro a UNAMIR completou os 5.500 capacetes azuis autorizados em Ruanda. Em junho de 1994, foi aprovado, por meio da Resolução 929 do Conselho de Segurança, o envio de uma segunda missão, a Operação Turquesa, paralela à UNAMIR, mas com a prerrogativa do uso da força, autorizada pelo cap. VII da Carta da ONU. A atuação dessa operação era extremamente dúbia por ser esta chefiada pela França, que sempre adotara uma postura pró-governo hutu, conforme já apontado anteriormente14. Em função disso, houve dúvidas se essa operação estaria protegendo de maneira igualitária tutsis e hutus. Mais uma vez aparece, dentro do próprio âmbito das Nações Unidas, o transbordamento dos interesses estratégicos em detrimento da proteção das vidas humanas em risco. Até este momento, o Conselho de Segurança havia aprovado poucas resoluções versando sobre o conflito de Ruanda, e apresentava grande resistência em definir o conflito como um genocídio. Seus membros permanentes realizavam manobras institucionais para enfatizar o caráter interno do conflito, de tal modo que o termo genocídio fosse evitado para que não se suscitasse uma possível obrigação de atuar em local de pouco interesse estratégico. Assim, apesar da existência tanto da Convenção de 1948, quanto de claros atos genocidas em Ruanda15, a falta de evidências foi, durante todo o tempo, invocada para que as grandes potências pudessem se esquivar do envolvimento no conflito. Em função do seu comportamento auto-interessado, as potências estrangeiras só se fizeram presentes para evacuar seus cidadãos de Ruanda e, em momento algum, houve preocupação em repreender publicamente o governo ruandês pela violência a que vinha submetendo seus cidadãos. Segundo Over (1999), especialistas estimam que tenham morrido no conflito entre 500.000 a um milhão de pessoas (Over, 1999, p.132). Em flagrante desrespeito à Convenção de 1948, durante 100 dias os hutus perseguiram e exterminaram em torno de oito mil tutsis por dia, sem que houvesse qualquer interferência externa (Power, 2004, p.569). Nesse sentido, é possível perceber a inabilidade da Convenção de 1948 para a condução de ações autônomas, em face da complacência de grande parte das superpotências com a ação de génocidaires em áreas que não alimentavam seus interesses estratégicos. Finalmente, em 30 de junho de 1994, a Comissão de Direitos Humanos da ONU publicou um relatório em que admitia a ocorrência de um genocídio no território ruandês. Aproximadamente um mês depois, a FPR tomou a capital e, dias mais tarde, foi instaurado o governo de união nacional presidido por Bizimbugu (Japiassú, 2004, p.105). Tendo em vista o contexto supramencionado, é possível perceber que a Convenção de 1948 não foi capaz de produzir os efeitos pretendidos nem para prevenir, nem para impedir o genocídio de Ruanda durante a sua ocorrência, o que se deve à incapacidade desta e das demais instituições existentes no direito internacional em promover objetivos que se choquem com o caráter de maximização de poder das grandes potências. Isto porque estas conseguem flexibilizar princípios e manobrar instituições para que elas sirvam tão somente aos seus interesses, e não para produzirem custos que venham a ameaçar suas posições privilegiadas no sistema. Tal situação é possível porque tais instituições são construídas como meio de levar a cabo os verdadeiros interesses das superpotências, que propositalmente não dotam esses mecanismos de capacidade para conduzirem ações autônomas, de tal modo que a sua efetividade fica dependente da ação e da vontade desses Estados em cada caso. Nesse sentido, sintetiza Kolodziej (2000):
Tribunal Penal Internacional para Ruanda Apesar da inação do sistema internacional para prevenir ou conter o genocídio de Ruanda, houve uma mobilização dos Estados para punir os responsáveis por esses atos após a ocorrência do genocídio, por meio da instauração do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR). Segundo Forsythe (1983):
Power (2004) acrescenta que um tribunal havia sido recentemente instaurado para julgar os crimes cometidos na antiga Iugoslávia, onde ocorreu um número muito menor de mortes (Power, 2004, p.548). Nesse sentido, o Conselho de Segurança decidiu que o caso de Ruanda merecia a mesma atenção, para que não houvesse o questionamento da ordem internacional baseada -teoricamente - na supremacia dos direitos humanos, tal como esta foi arquitetada no pós - Segunda Guerra pelos Aliados. Estes países demonstravam interesse em que a ordem ideológica sobre a qual elas construíram sua legitimidade de ação não ruísse. É possível perceber, portanto, a existência de um contexto que demandava a punição desses crimes até mesmo para sustentar a existência de normas, como a Convenção de 1948, cuja importância havia sido tão ressaltada no pós-Segunda Guerra pelos mesmos países que, anos mais tarde, flexibilizariam suas letras. A atitude do Conselho de Segurança não foi isenta de críticas. Autores como Baehr (1999) e Power (2004) afirmam que o fato de a competência do C.S. estar pautada em casos de ameaça à paz e à segurança internacional gerou um certo desconforto entre alguns membros da sociedade internacional, uma vez que inexistia uma previsão expressa acerca da possibilidade de autorizar a criação de um tribunal ad hoc por violações aos direitos humanos. Portanto, o Conselho de Segurança precisou realizar uma interpretação mais elástica de sua competência para enquadrar o já consumado genocídio ruandês como um caso de ameaça à segurança internacional. Essa interpretação utilizou-se da grande quantidade de refugiados16 que se dirigiam às fronteiras do país, sob a alegação de que esse fluxo poderia acarretar um spill over do conflito (Power, 2004, p.548). Mais uma vez, o que se observa é uma manobra institucional realizada pelos membros permanentes do Conselho com vistas a responder à existência da Convenção e a continuar sustentando o discurso de supremacia de direitos humanos, instituído no pós- II Guerra, para consolidar a supremacia moral dos países vitoriosos. Tal discurso foi de fato ignorado em Ruanda, mas era necessário mantê-lo vivo para permitir a margem de manobra das grandes potências de atuarem em um sistema onde imperam, ainda que apenas na teoria, os valores por elas instituídos e que servem como instrumentos construídos para o avanço brando e legítimo de seu poder no sistema internacional, uma vez que estes valores são aceitos como universais pelas demais partes dessa arena. Nesse contexto, o TPIR foi aprovado, em novembro de 1994, por meio da Resolução 955 do Conselho de Segurança, por 14 votos a um, sendo de Ruanda o voto contrário17. Trata-se de um tribunal ad hoc, independente daquele para a antiga Iugoslávia, e sua sede localiza-se em Arusha, na Tanzânia. Já a Procuradoria e a Câmara de Apelação, comuns ao tribunal para a antiga Iugoslávia, estão sediados em Haia18. As atividades do Tribunal são regidas por um estatuto aprovado em anexo à resolução supramencionada. Em relação à competência ratione materiae, o TPIR pode julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e violações ao art. 3º da Convenção de Genebra e de seu protocolo adicional. A competência ratione temporis limita-se aos atos cometidos entre 01/01/94 e 31/12/94 e as competências ratione personae et ratione loci destinam-se ao julgamento de crimes cometidos por ruandeses internamente ou em Estados vizinhos, e por não-ruandeses no território de Ruanda19. O TPIR possui 89 celas individuais para a detenção dos acusados dentro do complexo prisional de Arusha, nos padrões estabelecidos internacionalmente. Visitas da Cruz Vermelha são autorizadas. Atualmente, estão detidos mais de 50 acusados, incluindo ministros, comandantes militares, líderes políticos, jornalistas e empresários20. Especificamente no que diz respeito à punição do genocídio, o Estatuto do Tribunal repete em seu artigo 2º21º o tipo penal da Convenção de 1948, com a única diferença que no parágrafo 3º, alínea b, a palavra "associação" foi substituída por "conspiração (Fernandes, 2006, p.106)". Nesse sentido, a norma internacional de genocídio consolidada por meio da Convenção de 1948 foi repetida em sua integralidade, permitindo, assim, a punição dos hutus, sejam eles particulares, governantes ou funcionários, conforme dispõe originalmente o art. IV da Convenção, caso tenham cometido os atos que se enquadrem de acordo com os art. II e III do documento, todos reproduzidos pelo Estatuto do TPIR. Desse modo, ao ser instituído, o TPIR colocou em prática o compromisso assumido no preâmbulo e no art. I da Convenção pelos quais os Estados signatários se comprometem a punir o crime de genocídio, julgando-o por uma corte internacional, caso o Estado perpetrador permaneça inerte, conforme previsto pelo art. VI que rege a competência do crime. Tal compromisso permitiu que 72 pessoas fossem presas e 33 acusados já estejam completamente julgados, de acordo com o site oficial do TPIR22. Os trabalhos do Tribunal foram iniciados em novembro de 1995 e foi no ano de 1998 que, pela primeira vez, desde a entrada em vigor da Convenção de 1948, um tribunal penal internacional julgou um caso de genocídio. Esse Tribunal destacou-se, ainda, por reconhecer a violência sexual contra a mulher, por meio de estupros sistemáticos, como um ato de genocídio. Tal interpretação levava em conta que o genocídio não precisava necessariamente destruir, bastando que debilitasse o grupo de tal forma que o deixasse incapaz de perpetuação ou à margem da sociedade (Power, 2004, p.549; Schabas, 2000, p.164). O supramencionado demonstra como em alguns aspectos o TPIR conseguiu cumprir uma aplicabilidade dos princípios declarados da Convenção de proteção da diversidade humana, por meio da garantia de sobrevivência de seus diferentes grupos. Tal cumprimento é extremamente importante para a eficácia da promoção dos direitos humanos, pois ainda que se argumente que ele tenha sido construído com base nos interesses das grandes potências, é possível constatar a importância do respeito a um padrão mínimo desses direitos para a sobrevivência digna da pessoa humana em um sistema anárquico. Por último, destaca-se que alguns casos relativos ao genocídio de Ruanda foram julgados por jurisdições nacionais. Como exemplo, é possível citar o caso de duas freiras católicas, além do professor universitário Vincent Ntzezimana e do ex-ministro Alphonse Higaniro, proprietário de uma fábrica de palitos de fósforo, que teria incentivado seus funcionários a exterminar tutsis. Todos os julgamentos supracitados ocorreram na Bélgica, com base em lei belga de 1993, que permite que seus tribunais nacionais julguem crimes de guerra, genocídio e violações dos direitos humanos, independentemente da nacionalidade do acusado e do local onde os atos foram cometidos (Fernandes, 2006, p.112-113). Nesse sentido, é possível perceber que a Convenção de 1948, por meio das instituições ligadas a ela e dela oriundas, ainda que não desempenhe totalmente o papel ao qual se propõe, não pode ser considerada letra morta em sua totalidade. Ou seja, ainda que esta tenha sido construída como forma de levar a cabo certos propósitos não declarados, a tipificação do crime internacional de genocídio por ela instituído serviu para a punição a posteriori dos responsáveis pelo genocídio de Ruanda. Tal condenação é extremamente importante para a prevenção de futuros genocídios, já que gera a consciência de que há a punição dos perpetradores deste tipo de crime, tornando-o, assim, uma prática mais custosa. Todavia, conforme pode ser observado acima, essa efetividade da Convenção a posteriori continua condicionada ao juízo de oportunidade e à conveniência das grandes potências. Afinal, a instituição do TPIR foi feita pela necessidade desses Estados de darem uma resposta ao genocídio, como forma de manter viva a ordem internacional por eles sustentada. Tal ordem coloca as grandes potências como moralmente superioras aos Estados violadores de direitos humanos, aumentando, assim, a legitimidade de seu poder no sistema internacional. Ademais, tendo em vista a existência de um sistema anárquico que estimula a competição e, conseqüentemente, o comportamento agressivo por parte de seus atores, essa aplicabilidade a posteriori da Convenção não garante que novos genocídios não serão perpetrados ou que esta tenha passado a ser capaz de garantir a promoção da paz. Balanço final do genocídio O Tribunal Penal Internacional para Ruanda, assim como aquele instaurado para julgar os crimes da antiga Iugoslávia, foram as primeiras experiências de instauração de jurisdição internacional para julgar crimes de genocídio, desde a entrada em vigor da Convenção de 1948. O fato de se ter esperado até 1994 para que essa experiência pudesse ser implementada, ignorando outros genocídios que ocorreram antes - a exemplo do Camboja e da situação dos curdos no Iraque -, demonstram as dificuldades, em termos de eficácia, da Convenção, que deveria servir, na prática, para prevenir e punir o crime em questão. Vale destacar aqui que, apesar de o TPIR representar um avanço, ainda que tardio, o estudo de caso realizado acima é capaz de demonstrar que as instituições internacionais existentes foram incapazes de prevenir e de intervir de maneira decisiva para mitigar o genocídio de Ruanda, simplesmente porque as grandes potências, como Inglaterra e EUA, não consideravam haver nada de relevante no tocante ao seu interesse nacional naquele país, enquanto a França apoiava o governo genocida, em função da expansão de sua influência e de seu poder na arena internacional. Nesse sentido, afirma Kolodziej (2000):
Ademais, o fracasso da intervenção na Somália e o caráter predominante de imperativos da não-interferência, corolário do princípio da soberania, também contribuíram para a postura de inércia. Enquanto isso, os genocidas implementavam seus planos sem maiores dificuldades, e a Convenção de 1948 permanecia, pelo menos durante o genocídio, letra morta. Ainda assim, o TPIR consistiu em um avanço, uma vez que possibilitou o debate entre promotores, advogados e acusados, permitindo que o planejamento dessas organizações pudesse ser traçado e seus perpetradores identificados (Power, 2004, p.565-566). O Tribunal aponta ainda, segundo Cançado Trindade (1999), para um maior monitoramento dos direitos humanos pela comunidade internacional (Trindade, 1999-2003, p.399). Deve ser destacado que, mesmo com a instituição do tribunal, fica evidente pela análise acima que a ausência de interesse estratégico dos países mais poderosos torna ineficaz o caráter preventivo da Convenção de 1948, assim como a possibilidade de intervenção baseada somente em critérios morais. Uma vez que os Estados são guiados pela busca de ganhos relativos e pela maximização do seu poder, as instituições parecem representar nada mais que instrumentos a serviço dessa finalidade. A própria instauração do tribunal, apesar de ser um avanço para a norma internacional de combate ao genocídio, corrobora a dependência que a efetividade dessas previsões normativas possui em relação às grandes potências. Entretanto, ao explicitar a intenção da punição dos criminosos por uma corte internacional, o TPIR dá um passo, ainda que inicial, para que a Convenção de 1948 adquira algum tipo de eficácia mais sólida. Isso porque, ainda que a prevenção do genocídio ruandês estivesse condicionada à conveniência das grandes potências, o Tribunal funciona como aviso aos perpetradores em potencial de que estes não ficarão impunes; além de fazer justiça à consciência das vítimas e da própria sociedade internacional. O caso de Ruanda demonstra que ainda há muito a ser feito para que a Convenção venha a ter efetividade plena no mundo dos fatos. Segundo Melvern e Williams (2004), esse genocídio demonstra não apenas a dificuldade de fazer os Estados agirem de acordo com o direito internacional, mas também a necessidade de se estimular uma efetiva ação dos Estados diante da ocorrência de um genocídio (Melvern & Williams, 2004, p.3), que vá além da simples construção de um argumento legal persuasivo. Referências Bibliográficas BAEHR, P. R. Human rights: universality in practice. New York: St. Martin's Press, 1999. 178 p. BARNETT, Michael; FINNEMORE, Martha. 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1A Convenção de 1948 define como genocídio: "Artigo II: Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:
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